CONTO: O ALIENISTA
D.
Evarista: o pragmatismo masculino em benefício da Ciência
Esse
conto começa demonstrando um aspecto evidente no contexto da época: a
reificação da mulher, vista como coisa, como um objeto para ser usado, preparada
para ser mãe e do lar.
Vejamos
como o autor a apresenta no texto:
Aos quarenta anos casou com D. Evarista da
Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de um
juiz-de-fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios
dele, caçador de pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se de
semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista
reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira
ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e
excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se
além dessas prendas, — únicas dignas da preocupação de um sábio, D. Evarista era
mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria
o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e
vulgar da consorte.
Essa visão que se tinha da
mulher no século XIX é claramente ressaltada pela apresentação feita por
Martins (2004, p. 11):
A historiadora Yvonne
Knibiehler perguntou em um artigo seu publicado pela revista Annales em 1976,
por que ocorreu uma regressão na condição feminina após a Revolução Francesa,
em particular no começo do século XIX, regressão esta que marcou profundamente
a vida pública e privada das mulheres. A autora explica que as mulheres do
período pré- revolucionário e mesmo as das primeiras fases da Revolução tiveram
importante participação política, exercitando seus direitos de republicanas ao
expressar livremente suas idéias, reivindicar os direitos civis, fundando
clubes onde discutiam política e elaboravam propostas visando à melhoria das
condições de vida das cidadãs. Knibiehler compara esse momento de intensa
participação e atuação das mulheres com o processo duplo de exclusão da vida
política e de reclusão à esfera doméstica, ocorrido logo depois, salientando o
papel dos médicos e da constituição de um discurso científico voltado para as
diferenças sexuais com a finalidade de demarcar espaços políticos de gênero
cuja fundamentação não estava na religião, mas na forma de conhecimento mais
elevada da razão humana: a Ciência.
Portanto, o que destacamos aqui é que a
Machado constrói como maestria e perfeição uma personagem que significa
historicamente o estereótipo feminino da época.
Cabe destacar que esse conto está
classificado entre os primeiros textos da fase realista do autor, tendo,
portanto, caráter bastante contemporâneo da situação sócio-histórico-econômico
da época.
Nesse contexto, é admirável a
sagacidade e competência com que o autor busca utilizar a ciência como amparo
para reforçar todas as características da personagem, o que demonstra mais uma
vez sua amplitude de visão e leitura da situação de sua época.
Referências:
MARTINS, Ana Paula Vosne. Apresentação. In: Visões
do feminino: a medicina da mulher nos séculos XIX e XX [online]. Rio de
Janeiro: Editora Fiocruz, 2004, pp. 11-20.